09/09/2009
Há quem receba médicos, pintores, pensadores famosos, generais, atores, ginastas, soldados, escritores, magistrados, diplomatas, comendadores e outros ilustríssimos. Outros psicografam somente os que precisam avisar, ensinar, lembrar e sentir saudades. Existem criancinhas afeitas ao diabo. Telêmaco não se classifica nestes casos. Não. O transe de Telêmaco tornava-o receptáculo do mais enfadonho dos espíritos, um certo dr.Ulysses Padilha.
A caneta dançava sob o apoio dos dedos de Telêmaco e o que saía em sua ponta era em fonte datilográfica e linguagem cartorial. No começo, o pessoal da Mesa frequentada por ele até se assustou: depois, durante a leitura do relatório contábil e de palavreado insosso do dr.Ulysses Padilha, deixaram escapar bocejos.
Os espíritos mais iluminados oravam para que aquela alma pobre encontrasse seu caminho. Mas tudo que dr.Ulysses Padilha compreendia era a legislação tributária de 1954 ou a manutenção de computadores a válvula. Telêmaco esforçou-se para abrir espaço a outras almas, mas concluiu que mesmo os outros mortos queriam distância daquele caroço.
Telêmaco lembrava-se da mãe: praticante e incentivadora da generosidade para evolução da alma. Orações, entretanto, não eram suficientes para trazer malemolência aquele sistemático. Pois as preces iluminam o caminho do bem. Ser legal ou ser chato está muito além do bem e do mal. A alma de Dr. Ulysses Padilha não atormentava os viventes com maldade. Apenas carimbava uma couraça de rotina à vida. Tinha a serventia de um relógio de pulso, seu tique taque um parafuso cada vez mais fundo ancorado no cérebro.
Tamanho dissabor provocou leve desespero. Telêmaco queria ajudar aquele espírito. Mas ignorava a forma de isto, já empregara os métodos usuais de auxílio às Almas. Além disso, era perceptível que o Dr.Ulysses Padilha se afeiçoara a Telêmaco. Talvez por solidão do além-túmulo, o espírito se fazia sempre presente. Não dava brecha. Abandonou a psicografia, começou a possuir o corpo do médium, que jorrava um fluxo monótono e incontrolável de palavras. Seu dom desperdiçado em discursos entediantes em momentos estapafúrdios, como shows de rock, viagens de metrô, sessões de cinema. Os viventes perdiam a paciência para lidar com o médium.
Telêmaco, normalmente abstêmio, deu para beber. Esperava - quem sabe? - espantar aquele encosto. Mas o álcool tornava o médium mais suscetível a influência do espírito e durante os porres discursava em voz empolada sobre as qualidades políticas da conduta internacional de Café Filho ou a fórmula química da baquelite. Os bêbados escutavam extasiados àquele que subia na mesa para declamar longos discursos sobre a grandiosidade das coisas mesquinhas e a relevância dos detalhes desimportantes. Gritavam vivas e outros incentivos, apesar de não terem compreendido a maior parte do real assunto do discurso, mas dito assim, de forma tão aborrecida, certamente mereceria ser levada a sério.
Uma noite, já trançando as pernas, Telêmaco se perdeu. Caminhou pela madrugada sem encontrar o caminho de casa. Mas Dr.Ulysses Padilha, que afinal, não era um mau espírito, procurou orientá-lo. A cidade mudara muito, com suas antenas luminosas cheias de parafusos e celulares cheios de botãozinhos. Andou pelas antigas ruas, saudoso da vida simples e dos vaga-lumes. Lá pelas tantas, a alma reconheceu a cadência e a batida de sambas antigos. Seguiu o batuque e encontrou uma porta aberta, cujo final da escadaria terminava em um Clube de Danças de Salão.
Hesitou antes de entrar, não era lugar que costumasse frequentar, mas eis que passava um grupo de senhoras sorridentes e gargalhantes, talvez um tanto esvoaçantes demais para a idade. Teve a impressão de reconhecer uma delas. Subiu a escadaria em sua perseguição. Lá em meio aos casais suados e rodopiantes redescobriu dona Leocádia, antiga paixão da adolescência. Ficou de longe a observá-la. Viu a transformação de Leocádia em uma senhora pingando de tanto dançar no salão, a sombra e o rímel escorrendo-lhe nas rugas. Mas ela era indiferente a estas máscaras: lambia os beiços até estalar após os copões de cerveja. A velha paixão reacendeu o peito incorpóreo de dr.Ulysses Padilha: fez Telêmaco abordar aquela viúva. Dona Leocádia admirou-se por um bebê como aquele parecer interessado nela. “És arqueólogo ou tão somente golpe do baú?”. Mas a vida para ela era curta demais para estas inconveniências. Conversaram muito e ela, sempre direta: “Como um menino como você pode ser tão chato?” e o puxou para o meio do Salão. Ele desculpou-se por não saber dançar, por estar tão bêbado e ela respondeu que era taxi-girl na juventude, tinha paciência com pés de chumbo e já vira bebuns em estado muito pior que o dele. E ela o conduziu para lá e para cá e o fez girar. Tanto que Telêmaco sentiu-se mal e vomitou. Mesmo assim, Leocádia não abandonou o garoto. Quando se cansava, pedia a uma de suas amigas que se encarregasse do rapaz: Cota, Leninha, Edwirges, Genoveva, Esmeraldina, Penélope. Cada uma delas explodindo de tesão do viver, apesar dos enterros, das artroses, das temporadas celibatárias, das varizes, da catarata, dos filhos que tomam dinheiro, das dentaduras, das noras vagabundas, dos remédios para evitar o que virá, dos netos invisíveis ou viciados, da solidão do rádio ou televisão no último volume pela madrugada.
A alma sentiu o desperdício de se atrelar.
Na noite seguinte, Telêmaco e dr.Ulysses Padilha estavam novamente no Clube. Dona Leocádia gostou de ver o rapazola. Eles chegaram, por conta própria, a mesma conclusão de Benjamin Franklin a respeito da mulher madura. Apesar disso, ela sempre ameaçava Telêmaco: “Se me passares para trás, te mato, filho da puta!” Depois de morta, a Alma submersa aprendeu a pirar e a respirar. Tirou o doutor e o Padilha do nome, conforme ela lhes ensinara: “Precisa de sobrenome quem não sabe conquistar respeito”. Telêmaco faleceria muitos anos depois de cirrose, mas até chegar lá, foi só alegria, alegria.
08/09/2009
06/09/2009
DELIRAR
(sair do caminho)
Será preciso imaginar a seguinte cena, para se perceber como foi criada a palavra “delirar”:
Um lavrador vai ao campo preparar as sementeiras. Faz um comprido sulco, raso e largo, com o facão do arado; e depois volta fazendo outro, e outro, muitos mais, em alamedas paralelas, para facilitar a semeadura. Mas a calma do sol da tarde age-lhe no espírito, e ele devaneia – sem parar o trabalho. O arado corta a terra já sem rumo fixo, em linhas tortas.
Esse lavrador está “delirando”.
Delirar quer dizer, literalmente, “sair (o lavrador que conduz o arado) do sulco (planejado)”. O verbo latino delirare é formado pelo prefixo latino de-, “fora de”, “afastado de” + lira, “sulco feito pelo arado”.
Quem sai do caminho traçado pode também ser uma aberração, já que aberratio, em latim “afastamento”, é o ato de aberrare, “desviar-se do caminho”, de ab+errare, sendo errare “vagabundar”, “andar ao léu” em latim.
Mas o delírio – e a aberração - são muito diferentes de um êxtase, ao menos semanticamente: se o primeiro é “sair do sulco”, a segunda é “sair do caminho”, este último é “sair de si mesmo”, pois o grego ekstasis, “transe” é formado de ek-, “fora de” + histanai, colocar-se).
Já quem considera, além de sair de si e do caminho, vai bem longe, pois considerar, que é “pensar, refletir cuidadosamente”, etimologicamente é “estar nas estrelas” (L. cum- “junto a” + sidera, “estrelas”).
[LATIM delirare > pref. de-, “fora de” + lira, “sulco de arado”]
(seria a poesia então a arte de provocar o delírio no Homem, a arte de "delirá-lo" desse transe coletivo que são os preconceitos, os sulcos que já estavam aqui antes de nascermos (fazer poesia é imergir nesse sulco para roubar de lá com as sementes que ainda estão vivas
Murilo Hildebrand de Abreu
02/09/2009
Ouço um moço
Gritar do poço
No fundo de si
A voz do moço
Anseia a corda
Que está em meu pescoço
É só o que quer, o moço
Subir e sair do poço
Com minha ajuda
Com minha corda
No poço onde está o moço
É sempre noite e alvoroço
Em cima, onde me encontro
O sol está se pondo
Quis Deus,
Em ironia,
Que em minha escolha
De morte
Eu ouvisse alguém clamar
Vida
Sua voz invocada por tênue força
Está se esvaindo
Mas ainda ouço o moço
Do fundo do poço
Decido
Quebrar o galho
Desatar o nó
E jogar a corda
Minha morte pode esperar
Por quem decidiu pela vida
Que o moço saia do poço
Depois mastigo meu desgosto
O moço se equilibra na beirada do poço
E eu, desvalida, caio no fosso
Grito, não sei porque, para que ele me
Devolva a corda e me tire dali
Mas o moço, o mesmo moço
Que a pouco tirei do poço
Eu não mais ouço
Eu não mais ouço
Nem sei existe o tal moço
André Amaral