06/09/2009

(talvez a mais poética característica da poesia é que ela é o antídoto contra o preconceito primeiro, inicial, radical: a palavra, o nome, a definição. E, por mais paradoxal que seja, como antídoto a poesia vai utilizar-se da própria palavra para combater o veneno da palavra, a definição que ela carrega em si e que é descarregada em nós quando ainda estamos no berço, quando ainda não tivemos conhecimento das regras do jogo, quando ainda não temos condições de defendermo-nos dessa peçonha (e talvez por isso a poesia seja a arte de encalacrar o escorpião de que trata Cortázar, a arte de fazer a palavra injetar veneno na própria palavra em uma quantidade calculada para que a palavra não morra e sim recupere sua saúde, sua vivacidade (talvez a poesia possa ser indefinida como a arte de provocar o delírio (não o delírio entendido por seu significado mais costumeiro, entendido como loucura, fuga da realidade. Não. O delírio que nos explica José Carlos Fernandes em Dentro do Dentro:

DELIRAR
(sair do caminho)

Será preciso imaginar a seguinte cena, para se perceber como foi criada a palavra “delirar”:

Um lavrador vai ao campo preparar as sementeiras. Faz um comprido sulco, raso e largo, com o facão do arado; e depois volta fazendo outro, e outro, muitos mais, em alamedas paralelas, para facilitar a semeadura. Mas a calma do sol da tarde age-lhe no espírito, e ele devaneia – sem parar o trabalho. O arado corta a terra já sem rumo fixo, em linhas tortas.

Esse lavrador está “delirando”.

Delirar quer dizer, literalmente, “sair (o lavrador que conduz o arado) do sulco (planejado)”. O verbo latino delirare é formado pelo prefixo latino de-, “fora de”, “afastado de” + lira, “sulco feito pelo arado”.

Quem sai do caminho traçado pode também ser uma aberração, já que aberratio, em latim “afastamento”, é o ato de aberrare, “desviar-se do caminho”, de ab+errare, sendo errare “vagabundar”, “andar ao léu” em latim.

Mas o delírio – e a aberração - são muito diferentes de um êxtase, ao menos semanticamente: se o primeiro é “sair do sulco”, a segunda é “sair do caminho”, este último é “sair de si mesmo”, pois o grego ekstasis, “transe” é formado de ek-, “fora de” + histanai, colocar-se).

Já quem considera, além de sair de si e do caminho, vai bem longe, pois considerar, que é “pensar, refletir cuidadosamente”, etimologicamente é “estar nas estrelas” (L. cum- “junto a” + sidera, “estrelas”).


[LATIM delirare > pref. de-, “fora de” + lira, “sulco de arado”]

(seria a poesia então a arte de provocar o delírio no Homem, a arte de "delirá-lo" desse transe coletivo que são os preconceitos, os sulcos que já estavam aqui antes de nascermos (fazer poesia é imergir nesse sulco para roubar de lá com as sementes que ainda estão vivas


Murilo Hildebrand de Abreu

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