Tatiana Nolla - S/título - fotografia - 2008
23/10/2009
fábula dos Lobos
O fogo na lareira se acendeu em um fulgor alaranjado quando a pequena pilha vermelha de roupas infantis alimentou seu corpo impalpável. A menina nua subiu na cama rangente da parenta e deitou-se sob a coberta puída da velha para escutar a voz esganiçada narrar:
-Quando a primeira Chapeuzinho caiu naquele túnel estreito e carmim dentro da boca do Lobo ela tentou se agarrar nas reentrâncias dos tecidos que recobrem o poço vertical até o estômago, mas foi tudo em vão, ela caiu, caiu, e teria se dissolvido no ácido daquele lago se não fosse um outro menino devorado anteriormente. Ele fizera uma jangada com ossos não digeridos, pedaços roídos do couro de botas velhas, os pregos destas solas, dentes de ouro, a madeira das próteses, o conteúdo de bolsas amarradas junto ao corpo ou enfiadas no rabo dos viajantes covardes que temiam mais os ladrões que os Lobos. De tudo isto fez uma embarcação com a qual salvou Chapeuzinho. Ele a levou para um promontório onde outros sobreviventes se reuniam em uma favela miserável, iluminada pelos gases intestinais recolhidos por lanternas espetadas em varas pelo chão. Eram muitos e eram homens e mulheres e sobreviviam como parasitas daquilo comido pelo Lobo que nunca alcançava satisfação por mais que comesse, as costelas aparentes sob a pele e o pelo. O tempo passou e eles ali construíram uma cidade sobre palafitas de material indigesto, com enormes redes tecidas de fios de cabelo com os quais colhiam a chuva de gente e carne mastigada que vinham do olho negro daquele céu escuro. Assim chegaram as sementes e plantamos árvores e pomares que aprenderem a crescer na treva, as raízes se acostumaram a beber dos ácidos e do sangue, os frutos fosforesciam para atrair os pirilampos polinizadores. Ali os primeiros habitantes envelheceram para antes de morrer, terem filhos, e seus filhos tiveram outros filhos, até chegarmos nós duas, eu e você neste quarto no meio deste bosque. Saiba, minha neta querida e apetitosa, dizem que um dia virá um caçador que com seu machado romperá a derme e a carne deste nosso monstro que nos rodeia e veremos um cometa rasgar o céu desta noite, trazendo uma luz tão forte que nos cegará e neste dia sairemos da barriga de nosso hospedeiro velho e quase morto e saberemos então o que é o frescor e o que é o frio. Neste dia finalmente seremos livres para procurar um novo Lobo para viver.
Brontops - 2009 - http://brontops.blogspot.com
O fogo na lareira se acendeu em um fulgor alaranjado quando a pequena pilha vermelha de roupas infantis alimentou seu corpo impalpável. A menina nua subiu na cama rangente da parenta e deitou-se sob a coberta puída da velha para escutar a voz esganiçada narrar:
-Quando a primeira Chapeuzinho caiu naquele túnel estreito e carmim dentro da boca do Lobo ela tentou se agarrar nas reentrâncias dos tecidos que recobrem o poço vertical até o estômago, mas foi tudo em vão, ela caiu, caiu, e teria se dissolvido no ácido daquele lago se não fosse um outro menino devorado anteriormente. Ele fizera uma jangada com ossos não digeridos, pedaços roídos do couro de botas velhas, os pregos destas solas, dentes de ouro, a madeira das próteses, o conteúdo de bolsas amarradas junto ao corpo ou enfiadas no rabo dos viajantes covardes que temiam mais os ladrões que os Lobos. De tudo isto fez uma embarcação com a qual salvou Chapeuzinho. Ele a levou para um promontório onde outros sobreviventes se reuniam em uma favela miserável, iluminada pelos gases intestinais recolhidos por lanternas espetadas em varas pelo chão. Eram muitos e eram homens e mulheres e sobreviviam como parasitas daquilo comido pelo Lobo que nunca alcançava satisfação por mais que comesse, as costelas aparentes sob a pele e o pelo. O tempo passou e eles ali construíram uma cidade sobre palafitas de material indigesto, com enormes redes tecidas de fios de cabelo com os quais colhiam a chuva de gente e carne mastigada que vinham do olho negro daquele céu escuro. Assim chegaram as sementes e plantamos árvores e pomares que aprenderem a crescer na treva, as raízes se acostumaram a beber dos ácidos e do sangue, os frutos fosforesciam para atrair os pirilampos polinizadores. Ali os primeiros habitantes envelheceram para antes de morrer, terem filhos, e seus filhos tiveram outros filhos, até chegarmos nós duas, eu e você neste quarto no meio deste bosque. Saiba, minha neta querida e apetitosa, dizem que um dia virá um caçador que com seu machado romperá a derme e a carne deste nosso monstro que nos rodeia e veremos um cometa rasgar o céu desta noite, trazendo uma luz tão forte que nos cegará e neste dia sairemos da barriga de nosso hospedeiro velho e quase morto e saberemos então o que é o frescor e o que é o frio. Neste dia finalmente seremos livres para procurar um novo Lobo para viver.
Brontops - 2009 - http://brontops.blogspot.com
21/10/2009
14/10/2009
eu era terra quente que descia rumo ao rio. eu era pedra que seguia ciliar o rastro do sândalo que descia rumo ao rio. eu era pedra preta a terra vermelha sobre pedra preta que nos desmanchamos no rio, o mesmo rio que lavou pedras brancas. eu era raízes presas nas pedras brancas.
e Èramos todos correnteza, água corrente ao encontro de outras pedras.
Mariana Campos, 2009
e Èramos todos correnteza, água corrente ao encontro de outras pedras.
Mariana Campos, 2009
10/10/2009
Olhar
a Williams
O carrinho de mão vermelho
não sugou apenas meu olhar.
Carregou o parco enquadrar
à infinita possibilidade angular
que brota de cada fragmento,
restituindo o valor absoluto
que cabe a cada ponto de fuga.
Ou seria eu o fugitivo a olhar
descontroladamente o macro,
absolutamente fora de foco
na impossibilidade de se notar
na totalidade que varre o olhar,
engolindo tudo de uma só vez
destituindo o valor do mastigar?
mínimo agigantando-se total
sob a retina que o descobre
construção única e possível
do que se configura grandioso,
absorvendo cada gota de tempo
no diminuto instante perdido
no imperceptível que se instala
em todos os cantos esquecidos.
O carrinho de mão vermelho
não ajustou apenas meu olhar,
postou-me como alvo contínuo
de todo fragmento que se mostra
amplo e generoso de se mergulhar.
Ninil
a Williams
O carrinho de mão vermelho
não sugou apenas meu olhar.
Carregou o parco enquadrar
à infinita possibilidade angular
que brota de cada fragmento,
restituindo o valor absoluto
que cabe a cada ponto de fuga.
Ou seria eu o fugitivo a olhar
descontroladamente o macro,
absolutamente fora de foco
na impossibilidade de se notar
na totalidade que varre o olhar,
engolindo tudo de uma só vez
destituindo o valor do mastigar?
mínimo agigantando-se total
sob a retina que o descobre
construção única e possível
do que se configura grandioso,
absorvendo cada gota de tempo
no diminuto instante perdido
no imperceptível que se instala
em todos os cantos esquecidos.
O carrinho de mão vermelho
não ajustou apenas meu olhar,
postou-me como alvo contínuo
de todo fragmento que se mostra
amplo e generoso de se mergulhar.
Ninil
09/10/2009
Eu que Não Sei Pescar
toda vez que viajo
para a cidade de minha infância
encontro trinta mortos
pendurados nas janelas
esperando
de mim a parte
de areia e cimento
para cobri-los
de fé e de pedra
encontro cavoucando
o canteiro de lama
- meu playground de criança –
minhas memórias guardadas
em cabeças de minhocas minúsculas
iscas para pescar
peixes de água doce
eu
que não sei pescar
anzol perdido no tempo
Marcelo Maluf - 2009
08/10/2009
07/10/2009
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