Ultravioleta
A fada acorda e recusa-se a despertar. Devia se espreguiçar, abrir os braços, respirar fundo, esticar as pernas, sentir o mundo com os pés... Não dá. Sono pesado demais. Então se aninha mais sob a coberta e enterra cabeça em si mesma, para impedir a luz de se infiltrar sob as pálpebras. Tenta continuar a dormir, sonhar talvez, mas não o som do bosque não deixa. Cigarras. Zumbido de zangões transitando entre anteras e nectários. Sinal de manhã quase madura, o sol pinicando a pele de quem se submete a sair nu sobre o dia. Mas ela está ali, protegida, um nenê em meio ao enxoval. Murmúrio de riacho perto. Tapete de limo nas pedras. Um avião mudo passando lá em cima. A fada sente um pouco de sede, mas ainda não quer se levantar. Deveria ter ido dormir perto do rio, ou sobre as folhas, aproveitaria para beber o orvalho. Ela tenta recordar como viera parar ali, naquele aconchego. Conclusão: acabara de se fechar na crisálida e agora só faltava nascer. Seria sair, rebentar aquela seda e se pendurar no abismo. Então esperar secar as asas, abrí-las, deixá-las na brisa. Ela sairia pelo bosque, pousando entre as flores, procurando as irmãs. Cantoria de passaredo. Brilho metálico dos colibris. Entretanto o não-nascimento implicaria no não-conhecimento do mundo. Tudo seria instinto, inocência ou ignorância. Desconheceria o dia ou a noite, ou os chamados dos insetos, ou os rastros dos jatos no azul ou o odor doce da primavera. Entre as fadas, não se fala em ressuretos ou em reencarnações. Só se conjuga o tempo presente. A fada espera o momento de arrebentar a crisálida. Mas é só delírio: ela não conseguirá. Pois ali, entre os elos e nós das teias, a fada está presa no casulo no veneno no sono de viver.
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